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Reduza seus danos

"Redução de danos" foi um termo que conheci na década de 1990 ao atuar no Programa de Prevenção da Aids. Tratava-se de um trabalho proposto para atender usuários de drogas injetáveis, visando evitar a transmissão cruzada de doenças por via sanguínea. Confesso que na minha trajetória de 35 anos como profissional de saúde, talvez tenha sido essa atividade a que mais gerou reflexões no meu ser e fazer. Fui criada em um ambiente que, diariamente, alertava sobre os malefícios das drogas. Drogas ilícitas, óbvio. Meu pai (que até hoje não dispensa whisky, cervejinha e afins) e minha mãe (que fumou uma vida inteira) não se cansavam de repetir: "drogas são a desgraça da humanidade". Quando viemos estudar em Santa Maria, o que mais me assustava eram os "famigerados drogados".

A vida andou e, no caminho, atuando em diferentes setores, tive a oportunidade de ser consultora do Ministério da Saúde no programa de prevenção das ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis). Tudo corria bem, até atender com uma certa frequência, jovens infectados pelo HIV. Essa rotina me inquietava profundamente. Quem eram esses meninos? Como haviam se infectado? O que isso afetaria em suas vidas futuras? A resposta, quase sempre, levava ao compartilhamento de seringas, pois era alto o índice de usuários de drogas injetáveis naquele período. Fiquei sabendo do projeto intitulado "Redução de Danos" (PRD), o qual acessava o usuário de droga no seu ambiente e tentava combinar com ele, ao menos, o uso limpo. Ou seja, não compartilhasse sua seringa com os demais usuários, pois além do dano da droga, poderia levar na carona a aids, sífilis, hepatite e tantos outros problemas. Complicadíssimo para uma enfermeira em que ainda retumbava na cabeça a mensagem "usuário de droga não presta, minha filha, cuidado".

Precisei ler, estudar, refletir e, principalmente, reconhecer que os lugares do Brasil que já haviam implantado o PRD diminuíam drasticamente as infecções cruzadas das ISTs. Finalmente, convencida dos benefícios do projeto, trouxemos essa dinâmica para nove cidades da região central do Estado e constatamos rapidamente seus efeitos. A aproximação com usuários de drogas, possibilitou sensibilizá-los para os danos do compartilhamento das seringas. A partir da compreensão deles de que estávamos ali para cuidá-los e não julgá-los, fez com que alguns demonstrassem, inclusive, o desejo de cessar ou diminuir o uso das drogas e pedir socorro. Hoje ainda encontro alguns desses, já não tão meninos, os quais conseguiram mudar seus rumos e seguiram a vida a partir da redução de danos que conseguiram praticar. Fico emocionada quando encontro esses rapazes pelo Calçadão e recebo abraços afetuosos.

Enfim, é certamente um trabalho complexo que exige muito mais do que poucas palavras para explicá-lo. O que posso dizer é que, a partir dessa dinâmica, consegui combinar, por exemplo, com a minha mãe, que ao invés de 20 cigarros por dia, ela tentasse apenas 10, assim estaria reduzindo o seu dano. Ao conversar com uma pessoa com hipertensão, negocio a quantidade de sal, com o portador de diabetes, o uso controlado de doces, e assim por diante. Finalmente, percebi que não conseguiria fazer a mágica da abstinência, apesar do desejo imenso de que as pessoas, todas, conseguissem se abster de coisas que lhe prejudiquem.

Procuro ser uma profissional de saúde que atenda a todos e todas, respeitando os princípios da universalidade, equidade, integralidade e mais, dando voz ao usuário do serviço, pois ele tem muito a nos ensinar. Certamente reduzi meu dano de achar que eu sabia tudo e era a dona da razão. Busco me tornar, a cada dia, mais flexível, apesar de reconhecer que tenho muita dificuldade com pessoas preconceituosas, grosseiras e arrogantes. Tente reduzir o seu dano. Sua saúde agradece.

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